
Coluna MND — Do samba à saúde mental:que louCura!
A importância do cuidado.
Eu não gosto de psicólogo porque psicólogo é fofoqueiro!
É com essa sentença que se dá o meu encontro com “Dona Ivone”, para iniciarmos uma aventura terapêutica, um cuidado, ainda na pandemia e, por conta disso, uma escuta virtual.
Vou chamá-la de Dona Ivone, nome fictício para preservar a identidade dessa ancestral do presente, que não é minha paciente, cliente e nem usuária, e sim uma das nossas que chegou a mim por intermédio da sua filha, para atendimento psicológico. É uma mulher negra, mais velha, costureira como profissão desde os 12 anos de idade, casada há mais de cinco décadas, nascida na Ilha do Marajó-PA e que me elegeu como “A” fofoqueira de cabeceira; e essa permissão, essa autorização para adentrar em sua casa-memória, me traz uma felicidade proporcional à responsabilidade ao me curvar, me inclinar para lhe ouvir, sempre que nos encontramos em campo psíquico.
No gesto de me abaixar para ouvir sua voz baixa, no processo de me inclinar, de clinicar, percebo o quão D. Ivone, para além da repulsa por gente fofoqueira, que eu fecho com ela, pelo compromisso ético, Art. 9º do Código de Ética Profissional da Psicologia, assim como por uma ética da generosidade; percebo que para ela, ser ouvida, acolhida, cuidada, é tido como algo que não lhe pertencia, ou não lhe pertence, pois sabemos que em uma estrutura racista, todo tempo é estampado: aqui você não pode entrar, aqui você não pode comer, aqui você não pode dormir, você está acompanhada com quem? São muitas as negações.
E ela que durante toda a sua vida esteve na posição de não poder fazer batuque na cozinha (João da Baiana), vadiar, dançar, se autocuidar, e que com muita dificuldade conseguiu, hoje, ter uma vida com algum recurso financeiro para bancar um processo terapêutico, cuidar da sua saúde mental e ancestral; ela, por vezes, ainda esboça estranhamento em sua reintegração de posse. Da posse da fala, do cuidado, da acolhida, do direito de ser humana, da escuta ética, agora por uma igual, por uma psicóloga negra que ela afirma gostar de ter conhecido, encontrado.
Foram me chamar. Eu estou aqui, que que há?

Dona Ivone Lara, mulher, negra, cantora, compositora, sambista, cavaquinhista, poeta, dançante, “dama do samba”, “joia rara’, e, e, e, e…, Assistente Social e Enfermeira. Esses dois últimos artifícios, arte e ofício de Dona Ivone Lara, ainda são invisibilizados, e por vezes, apagados de sua vida-obra; sua trajetória no campo da saúde mental, de seu legado intelectual, técnico e prática terapêutica por meio da arte, em particular da musicoterapia. Esse apagamento que fez e faz com que muitas mulheres negras não se vejam nesse lugar de invenção de ferramentas de cuidar por meio da arte, ou não se vejam como protagonistas nos espaços de fabricação da saúde, e tão somente como pacientes, quando muito, usuárias, ou como clientes nas clínicas mercadológicas.

A enfermeira Ivone, que aparece no filme Nise da Silveira: o coração da Loucura, do diretor Roberto Berliner (1915), interpretada pela atriz Roberta Rodrigues, é a nossa “jóia rara”, Dona Ivone Lara. Ela estava lá dentro desde a década de 1940, aos 25 anos já exercia a enfermagem no Engenho de Dentro, Hospital Psiquiátrico que tem um histórico de práticas de tratamento em saúde mental, extremamente invasivas, violentas e produtoras de mais adoecimento psíquico. Dona Ivone Lara, enfermeira, também tinha formação em Serviço Social, era Assistente Social e, até se aposentar, de acordo com o Jornal Práxis, (CRESS/RJ)[1] , se apresentava como “Yvonne Lara, assistente social,” e não como cantora ou compositora, segundo afirma Mila Bourns, responsável por sua biografia (2009). Exerceu a profissão de Enfermeira e Assistente Social em hospitais psiquiátricos no Rio de Janeiro, de 1947 a 1977[2], ou seja, quatro décadas dedicadas à arte do cuidar.
Era extremamente dedicada à arte, ao cuidar.
Ao desenvolver cada vez mais suas habilidades e técnicas enquanto Terapeuta Ocupacional, sua especialização, a então Yvonne Lara, via em Nise da Silveira, Psiquiatra que fez enfrentamentos diários para ter seu fazer clínico validado pela ciência da época; viu nesta parceira de labuta, a possibilidade de experimentação do que sempre a moveu e sustentou seu fazer profissional dentro e fora do Engenho de Dentro.
Nos bambas a distração.

O enfrentamento ao horror, do que se tinha, à época, como método de abordagem terapêutica, Dona Ivone Lara já fazia e operava com labor profissional e humor artístico, mesmo que seu nome e legado não estejam diretamente ligados ao que hoje temos de acúmulo do Movimento de Luta Antimanicomial e da implementação das políticas de desencarceramento psiquiátrico no Brasil. Ela estava lá, ela veio de lá, de dentro, era lá também que ela se juntava aos bambas pra se distrair e produzir saúde mental.
Aqui a gente chega em um cruzamento importante, uma encruzilhada, com permissão da sabedoria de terreiro para utilizar a expressão, para afirmar que nós, mulheres, negras, não somos só guerreiras o tempo todo, isso nos desumaniza, os serviços de saúde pública precisam acolher o sofrimento psíquico da mulher negra, precisa lhes acolher, acolher as mulheres negras que produzem cuidado há muito tempo e que são as maiores vítimas de violências políticas, que vão desde as práticas recorrentes de silenciamento, passando por assédios, até o apagamento por completo. O relatório do Instituto Marielle Franco, publicado recentemente, apresenta dados detalhados sobre violência política sofrida por mulheres negras no Brasil.
[1] Somado a outras formas de silenciamentos e violências, como a violência obstétrica, que incide no corpo e a memória, recursos importantes de acesso à ancestralidade, assim a violência vivida em ato, que reverbera para além do ato em si; a perda de um filho, em circunstâncias racistas e que produz adoecimento mental, fabrica novos contingentes de população que podem vir a se constituir como novos usuários dos serviços de saúde mental, os quais, dependendo do método de abordagem, podem lhes colar o rótulo de “violentas”, “loucas”, “esquizofrênicas”, “ressentidas”, “auto sabotadoras” e até “tóxicas”.
Assim, muitas dessas mulheres carregam dores físicas e psíquicas produzidas por uma estrutura racista, misógina, classista, injusta, sem ter onde desaguar, ou quando encontram colo, escuta, levam um tempo para se permitir receber dengo, celebrar suas existências, prosperar e seguir de cabeça erguida e protegidas.
…alguém me avisou, pra pisar nesse chão devagarinho.
Mulheres negras pisam nesse chão devagarinho, e com muita firmeza, há muito tempo; com suas poesias, terapias, musicoterapias, ventanias, valentias, políticas de aquilombamentos, táticas sofisticadas de fuga, capoeiragem, resistência.
Cuidar e acolher a dor psíquica da população negra é fazer batuque na cozinha para incomodar o sono dos injustos, como nos sopra Conceição Evaristo, quando fala de seu processo de escrita. É mostrar para Sinhá que a uma mãe que perdeu seu filho para o racismo, perde saúde também, tem a sua saúde mental comprometida, e que aos profissionais do campo das políticas públicas voltadas para o atendimento à saúde mental, não cabe interpretar o que é real, racismo não se interpreta, racismo se combate! Racismo é crime e as dores provocadas por práticas racistas, não devem ser lidas como dores individualizadas, ainda que subjetivas, são efeitos do real vivido e produzido por uma estrutura violenta, que faz sangrar e jorrar o sangue inclusive nas marmitas.
Não precisamos e nem vamos enterrar o nosso “negro interior” (NASCIMENTO, 1982), isso o sistema racista já faz, literalmente, além de subjetivamente. Precisamos sim, acolher a dor dos nossos, das nossas, operar e reivindicar espaços de cuidar por meio do dengo, do autodengo, do dengo coletivo, político, do dengo afirmativo, para buscar quem mora longe, sonho meu.
Texto por: Ana Silva (poeta — psicóloga e articuladora MND)